Há uma nítida evolução no debate e nas práticas que envolvem o tema da governança corporativa mundo afora.
Em 1992, foi divulgado o relatório Cadbury, no Reino Unido, promovendo mudanças significativas no seio das organizações, visando mitigar riscos e assegurando maior longevidade nos negócios, além de dar maior apoio aos investidores do mercado de ações.
A despeito deste e de outros avanços, o mundo corporativo vivenciou graves desvios de comportamento, sendo o mais simbólico deles o caso Eron, nos EUA, que em 2002 liquidou o empreendimento, levando consigo uma das companhiasas mais respeitadas até então na indústria de consultoria/auditoria: a Arthur Andersen.
Foi necessário colocar freios na criatividade contábil; exigir aperfeiçoamento dos controles internos e criar procedimentos para transmitir com transparência dados sobre os negócios, sobretudo àquelas empresas participantes da Bolsa de Valores nos EUA. Deu-se, então, a aprovação da lei Sarbanes-Oxley, que, de certa forma, engessou as atividades empresariais, mas foi tida como uma regulação imprescindível naquele momento.
Vale citar que nos EUA, já em 1977, estava em vigor o FPCA (Foreign Corrupt Practices Act), que passou por ajustes em 1998 e 2010, fortalecendo as iniciativas da SEC – a CVM daquele país – e o Departamento de Justiça quanto aos desvios de conduta no mundo corporativo de amplo espectro e com impacto sobretudo no mercado de ações.
No Brasil, o IBGC (Instituto Brasileiro de Governança Corporativa), que já está próximo de celebrar 25 anos de existência, tem sido porta-voz importante nas questões de governança, produzindo material singular quanto às práticas nas empresas em grande amplitude, desde para aquelas firmas de capital aberto como nas típicas empresas fechadas familiares e até cooperativas.
A CVM (Comissão de Valores Mobiliários), criada em 1976, tem desde então desempenhado papel relevante como órgão regulador do mercado, também atuando como “xerife” em questões de desvio de conduta.
Por tudo isso, não há como não reconhecer que a governança tem evoluído lá fora e aqui no Brasil, mas é preciso entender a exigência de frequente vigilância e adoção de medidas corretivas e/ou punitivas, visando aperfeiçoamento ainda maior e/ou para adequação a novas demandas uma vez que o ambiente empresarial está em contínua e acelerada mudança.
Este texto busca colocar em discussão um dos pilares/princípios básicos da governança cujo termo em inglês é accountability, e foi traduzido para o português como “prestação de contas”.
O Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa, do IBGC, não reinventa a roda e lista 4 princípios básicos, alinhados com os ditames da governança também fora do Brasil:
- Transparência;
- Equidade;
- Prestação de Contas,
- Responsabilidade Corporativa.
E qual é a definição para “Prestação de Contas” e/ou o que exige esta prática?
Diz o IBGC: “Os agentes de governança – sócios, administradores, conselheiros, auditores, conselho fiscal e conselho de administração – devem prestar contas de sua atuação de modo claro, conciso, compreensível e tempestivo, assumindo integralmente as consequências de seus atos e omissões e atuando com diligência e responsabilidade no âmbito dos seus papéis”.
De fato, embora a prestação de contas possa ser associada às questões de registro contábil, publicação de balanços e demonstrativos de resultado, não se trata só disso. Qualquer outro ato e/ou decisão no contexto do empreendimento, se relevante e impactante no curto e/ou médio prazo, merece atenção e responsabilidade por parte de tais agentes. Não é permitida omissão ou qualquer outro comportamento tipicamente classificável como “permissivo”.
Do lado da contabilidade, têm acontecido avanços importantes, incluindo a padronização de conceitos e metodologias. Nos EUA, já não é de hoje que o US GAAP foi adotado e, mesmo no Brasil, empresas sobretudo afiliadas de multinacionais usaram-no como referência e/ou prática em relatórios gerenciais, principalmente. Na Europa, as normas contábeis do IFRS – equivalente ao US GAAP – foram adotadas obrigatoriamente a partir de janeiro de 2005. E no Brasil? Desde 2010, gradativamente, as empresas têm aderido ao IFRS.
Como você pode depreender, embora as normas contábeis objetivem a melhor narrativa sobre o estado dos negócios de uma firma, US GAAP e IFRS têm diferenças. A padronização é bem-vinda, sobretudo levando em conta o fenômeno da globalização e a necessidade de comparação universal.
No contexto da prestação de contas, uma vez aplicada a melhor prática contábil, cabe aos agentes cuidar de outros fatos merecedores de revelação tanto aos órgãos reguladores/controladores, tais como: Banco Central, CVM, SEC nos EUA, levando em conta também que os relatórios contábeis tem data para publicação e os fatos não necessariamente podem esperar por suas publicações.
Vou listas alguns fatos que aconteceram recentemente nos EUA, que por se tratar de um mercado mais evoluído que o nosso, podem ajudar no entendimento da importância da prestação de contas na boa governança:
- Em dezembro de 2019, a Chevron publicou que faria um ajuste nos resultados do quarto trimestre, estimado entre US$ 10 e US$ 11 bilhões. A justificativa foi o ambiente de negócios nos EUA como resultado da exploração dos campos de xisto. Na prática contábil, tal ajuste será considerado na avaliação impairment de seus ativos e a própria empresa indicou que não haverá impacto de caixa. O mercado reagiu com queda no preço das ações em 1,4% no dia da notícia, mas na cotação de ontem (26/12) já havia se recuperado em +3,8%;
- A Royal Dutch Shell seguiu a concorrente Chevron e indicou, após o anúncio desta, que promoveria um ajuste de US$ 2,3 bilhões de mesma natureza. As ações caíram 0,5% e ontem (26/12) haviam se recuperado em 2,5%;
- A SEC (Securities and Exchange Commission), equivalente à CVM, aplicou multa de US$ 1 milhão à empresa Quantum Corp devido a reconhecimento indevido de receitas, em desacordo com as normas do US GAAP no período compreendido entre 2015 e 2018. A empresa atribuiu o problema a falhas de controle interno;
- A FCA (Fiat Chrysler Automobiles) foi acusada pela SEC de fraude na veiculação de notícias sobre seu desempenho de vendas no mercado dos EUA. Os fatos ocorreram de 2012 a 2016, quando a empresa inflacionou os números com o objetivo de mostrar desempenho superior a outras empresas do setor automotivo. E pior: teria bonificado seus distribuidores que mostrassem números distorcidos – para mais – no comportamento das vendas. A SEC aplicou multa de US$ 40 milhões;
- A empresa alemã Fresenius foi enquadrada no FCPA por atos de corrupção em diversos países. Os gastos desta natureza teriam somado US$ 135 milhões no período de 2009 a 2016. A empresa foi obrigada pela SEC a pagar os US$ 135 milhões de multa mais juros de US$ 12 milhões.
Como dito, não há dúvida quanto ao aperfeiçoamento das práticas de boa governança ao redor do mundo, mas o caminho a trilhar e o esforço devem ser contínuos, acompanhando as dinâmicas dos mercados. De outro lado a prestação de contas por parte dos agentes – administradores, conselho fiscal, conselho de administração, sócios e auditores – exige diligência e responsabilidade.
Revisão de texto: Virgínia De Biase Vicari